As sociedades brasileira e mundial vêm passando por uma evolução exponencial constante e veloz quando o assunto é internet e relações jurídicas nela estabelecidas. Não é por menos que o Judiciário cada vez mais se depara com ações para solucionar problemas que jamais foram cogitados pelo legislador.
Isso ocorre, principalmente, com a migração das relações cíveis para o âmbito virtual, ou seja, para internet. Por outro lado, o Poder Legislativo possui um processo rígido e formal que influencia diretamente no tempo para criação de novas leis, o que acaba, invariavelmente, aumentando o lapso temporal que o direito leva para acompanhar a evolução das relações sociais bem como para produzir soluções viáveis, apropriadas e justas.
A migração das relações para o ambiente virtual, o qual venceu as limitações físicas de distância que antigamente influenciavam tais mudanças, faz aumentar, e muito, a defasagem entre a regulamentação existente, e a realidade das relações jurídicas que deveriam ser regulamentadas.
Todo aspecto funcional e técnico relacionado ao funcionamento das operações na rede (leia-se, internet), para grande maioria da população, é desconhecido. E tudo aquilo que é desconhecido gera uma maior diversidade de interpretações e opiniões.
Significa dizer que a grande maioria da população brasileira, o que inclui as pessoas que compõem tanto o Poder Legislativo, como o Judiciário e Executivo, desconhece quais são as figuras por trás do funcionamento de sites, redes sociais, links, empresas virtuais e por aí vai.
E mais, a sociedade desconhece como ocorre a distribuição da responsabilidade civil dentro das relações civis existentes em âmbito virtual.
A contrário senso, é seguro afirmar que a grande parte da população está, no mínimo, familiarizada com as hipóteses de responsabilização civil de pessoas físicas e jurídicas no cerne de relações fora do âmbito virtual.
Isso acontece porque as relações não virtuais são corriqueiras e solidificadas há mais tempo, permitindo melhor compreensão acerca dos agentes, das obrigações, relações e, consequentemente, da responsabilidade civil nestas relações.
Pois bem, essa falta de conhecimento técnico acaba gerando o ajuizamento de ações diversas, muitas vezes sem saber precisar especificamente aquilo que se espera como resposta do Judiciário; o resultado disso são decisões que, diante de uma situação pouco conhecida e regulamentada na lei, geram incerteza sobre o direito aplicado ao campo virtual.
Terra sem lei
Neste contexto, não é incomum ouvir o seguinte jargão popular “a internet é uma terra sem lei”, justamente um reflexo da inevitável mora legislativa para criação de normas adequadas para solucionar os litígios que “nascem na internet”.
Como os conflitos da vida real deságuam no Judiciário, que deve apontar as soluções, cabe a ele adequar as normas já existentes aos casos mais inovadores. Vale aqui pontuar que o Marco Civil da Internet é uma lei de 2018 que teve por finalidade criar conceitos e balizas para responsabilidade civil dos provedores de aplicação e provedores de internet quanto aos conteúdos disponibilizados nas redes.
Portanto, tal norma foi o “pontapé” para que fosse possível começar a compreender quais são os agentes dentro das relações civis na internet.
Até porque é necessário compreender o limite da atuação e responsabilização das diferentes empresas que tratam dos dados, da rede, da distribuição da internet, bem como das pessoas físicas e jurídicas que utilizam da internet para fins pessoais e até mesmo empresariais.
Muitas foram as discussões levadas a juízo quando o assunto era o Marco Civil. Não por menos que, em outubro de 2023, foi publicada notícia no site do Superior Tribunal de Justiça informando a coleção de precedentes criados no STJ acerca da aludida lei. Vejamos:
A Secretaria de Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) disponibilizou aedição 222 de Jurisprudência em Teses, sobre o tema Marco Civil da Internet – Lei 12.965/2014. A equipe responsável pelo produto destacou duas teses citadas na edição. A primeira estabelece que as empresas prestadoras de serviços de aplicação na internet em território brasileiro devem se submeter ao ordenamento jurídico pátrio, independentemente da circunstância de possuírem filiais no Brasil ou de realizarem armazenamento de dados em nuvem. O outro entendimento em destaque afirma que configura concorrência desleal a utilização da marca de um concorrente como palavra-chave para direcionar o consumidor do produto ou serviço para links patrocinados (keyword advertising), contratados em provedores de busca na internet com o fim de obter posição privilegiada em resultado de pesquisa [1].
Na aludida edição 222 de jurisprudências em teses, encontram-se alguns aspectos de relevância sobre a interpretação do Marco Civil da Internet [2], julgados datados até 15 de setembro de 2023. Vejamos a seguir as teses firmadas mais relevantes:
1. “O provedor de pesquisa constitui uma espécie do gênero provedor de conteúdo, pois esses sites não incluem, hospedam, organizam ou, de qualquer outra forma, gerenciam as páginas virtuais indicadas nos resultados disponibilizados, apenas indicam links onde podem ser encontrados termos ou expressões de busca fornecidos pelo próprio usuário.”;
2. “Para o Marco Civil da Internet, os sites de e-commerce enquadram-se na categoria dos provedores de conteúdo, os quais são responsáveis por disponibilizar na rede as informações criadas ou desenvolvidas pelos provedores de informação.”;
3. “Empresas que prestam serviços de aplicação na internet em território brasileiro devem se submeter ao ordenamento jurídico pátrio independentemente da circunstância de possuírem filiais no Brasil ou de realizarem armazenamento de dados em nuvem.”;
4. “O provedor de internet deve manter armazenados os registros relativos ao patrocínio de links em serviços de busca pelo período de 6 meses contados do fim do patrocínio e não da data da contratação.”;
5. A utilização da marca de um concorrente como palavra-chave para direcionar o consumidor do produto ou serviço para links patrocinados (keyword advertising), contratados em provedores de busca na internet com o fim de obter posição privilegiada em resultado da pesquisa, configura concorrência desleal;
6. É possível a condenação ao pagamento de compensação por danos morais em razão da utilização de nome comercial e/ou qualquer marca registrada, como palavra-chave, para a ativação de links ou anúncios patrocinados em sites de busca na internet;
7. A responsabilidade limitada dos provedores de pesquisa, prevista no art. 19 do Marco Civil da Internet, não se aplica a sua atuação no mercado de links patrocinados;
Como é possível perceber por meio dos precedentes elencados acima, muitos são os temas de direito tratados nos precedentes destacados pelo Superior Tribunal de Justiça, como por exemplo:
responsabilidade por propagandas, conteúdos gerados por terceiros, armazenamento de dados, além de assuntos envolvendo concorrência desleal, propriedade intelectual, bem como a submissão de empresas estrangeiras às normas brasileiras.
Links patrocinados
Ainda, em julho de 2024, mais um precedente foi criado, inclusive sobre tópicos já inclusos na edição 222 do STJ, no que diz respeito os tidos “links patrocinados” e concorrência desleal, bem como suas consequências. Dando um entendimento ainda mais específico, sobre o tema qual seja:
“Na análise da responsabilidade civil dos provedores de internet por atos de concorrência desleal no mercado de links patrocinados, não é o conteúdo gerado no site patrocinado que origina o dever de indenizar, mas a forma como o provedor de pesquisa comercializa seus serviços publicitários, ao apresentar resultados de busca que fomentem a concorrência parasitária e confundam o consumidor”, afirmou a relatora, ministra Nancy Andrighi. De acordo com o colegiado, não se objetiva vedar a publicidade por meio de links patrocinados, mas tão somente a compra do domínio de marca concorrente para aparecer em destaque na busca paga. Na origem do conflito, a marca de uma empresa foi vendida para uma concorrente como palavra-chave no Google Ads, a plataforma de publicidade do Google. Assim, quando os internautas pesquisavam por aquela palavra-chave, a concorrente aparecia antes da real dona da marca, provocando desvio de clientela. Além de condenar a Google Brasil a indenizar a empresa vítima, a Justiça de São Paulo proibiu o provedor de comercializar aquela marca na sua ferramenta de links patrocinados [3].
Esse precedente demonstra o debatido no início deste artigo: a exponencial, constante e veloz evolução das relações jurídicas na internet e seus respectivos impasses.
É possível notar que, mesmo dentro de um tópico de alta especificidade, ocorrem ramificações ainda mais especificas do mesmo assunto, porém interpretadas por vieses diversos. Sobre esse aspecto, vale destacar os ensinamentos do ilustre doutrinador George Salomão Leite; Ronaldo Lemos:
“Numa ótica geral, o advento do Marco Civil representa um divisor de águas aos navegantes da era digital, denominada Sociedade da Informação, justamente pela especificidade no tocante ao conjunto de regras no texto sancionado, entretanto, ao contextualizar cada dispositivo legal contextualizar cada dispositivo legal, se verifica, numa primeira análise, que o legislador entendeu como pertinente recepcionar a integral da redação de dispositivos previstos em algumas Leis vigentes…” [4].
Portanto, a despeito de o Marco Civil ter suas características legislativas especificas, é preciso reconhecer que ainda há muito campo a se legislar, especialmente considerando a velocidade de evolução das relações jurídicas devido à internet.
A função do direito é atender às necessidades da sociedade, e, para isso, precisa acompanhar a evolução desta, ainda que por meio de ferramentas diversas da própria lei positiva, como por exemplo, o uso da jurisprudência, analogia, costumes e princípios gerais do Direito.
Por isso, reforça-se a opinião de que o Judiciário possui papel primordial para auxiliar o direito em atender da melhor forma possível às necessidades das partes de uma relação jurídica mantida no âmbito virtual.
Todavia, não se pode perder de vista que o importante papel a ser desempenhado pelo Judiciário não suprime ou substitui a função do Legislativo. Muito pelo contrário, o Judiciário deve agir dentro das ferramentas que lhe são disponíveis por força da lei oriunda da atividade Legislativa. As funções exercidas por cada um dos Poderes devem corresponder à sua esfera de competência, o que naturalmente tornará o ordenamento jurídico coeso e harmônico.
Até mesmo porque o Judiciário é um mero garantidor da aplicação do todo o ordenamento jurídico. Vejamos trecho doutrinário a respeito:
“A função típica do Poder Judiciário é a prestação da tutela jurisdicional, que consiste em aplicar a norma (que é abstrata) a um caso concreto, a um litígio (lide) que lhe foi apresentado, dizendo quem tem razão de acordo com o Direito. O ato jurisdicional produz a coisa julgada, a decisão judicial contra a qual não cabe mais recurso, tornando-se imutável. Jurisdição significa “dizer o Direito”, e qualquer cidadão tem direito a esta prestação (art. 5o, XXXV)” [5].
É o Legislativo o responsável pela “pesquisa de campo”, ou seja, estudar as relações, fazer estáticas, debater pautas atuais e criar, de forma célere, ainda que formal, normas que minimamente estejam em consonância às novas necessidades que nascem a todo momento na internet.
Representação da vontade do povo
Sobre o tema, vejamos os ensinamentos acerca do fato que o Poder Legislativo é uma representação indireta da vontade do povo quanto a criação de normas que atendem às suas necessidades:
“O Poder Legislativo é o representante direto do povo no processo de constrição do Estado de Direito. É através do Congresso Nacional que a representação popular pode expressar seus anseios e promover as mudanças legislativas almejadas pelos cidadãos. A participação ativa do cidadão no Estado é assegurada no processo de escolha dos representantes que compõem o Congresso Nacional” [6].
Em simples palavras: deve o Judiciário, a depender das especificidades de cada caso decidir dentro do limite legal que lhe imposto, verificando as normas aplicáveis e, na ausência delas, quais podem ser utilizadas a suprir a lacuna.
A existência de lacunas, entretanto, deve ser apenas momentânea, na medida que não retira a obrigação do Poder Legislativo se manter atualizado, levando à pauta a criação de leis que possam atender as necessidades das partes, sobretudo quando se identificar uma demasiada defasagem entre a realidade social e jurídica existente.
Obviamente que, neste cenário, se insere o papel do advogado, que na verdade é essencial, pois é preciso que os advogados cada vez mais adquiram conhecimentos sobre as discussões envolvendo temas como a responsabilidade civil de provedores de pesquisa, aplicação ou de internet, contribuindo para levar ao Judiciário com maior detalhamento possível a dinâmica da relação jurídica, os contornos que a regulamentam e as práticas do mercado envolvido.
Mas ainda é preciso desenvolver um conhecimento além do jurídico: um conhecimento técnico sobre os serviços prestados pelas mais variadas empresas que atuam como os variados tipos de provedores, bem como armazenamento e compartilhamento de dados, sejam pessoais ou não.
É, portanto, imperioso que os advogados tragam luz ao Judiciário, explicando assuntos pouco vistos e de difícil compreensão, mesmo que por auxílio de assistentes técnicos se o caso demandar.
Isso pois, diferentemente do Legislativo e do Judiciário, os advogados conseguem se manter atualizados na medida em que os litígios nesta seara surgem, estão na vanguarda dessas situações, principalmente por serem muitas vezes os responsáveis por estruturar relações inovadoras, como as da internet.
Portanto, cooperam para a celeridade do surgimento de soluções acertadas sobre os mais específicos e distintos conflitos que se instauram diariamente em razão das inovações promovidas pelas relações jurídicas, como, e hoje mais do que nunca, as relações que se situam na internet.
Publicado em ConJur.
[1] Superior Tribunal de Justiça. Notícias. Marco Civil da Internet é tema de Jurisprudência em Teses. Disponível em: < https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2023/05102023-Marco-Civil-da-Internet-e-tema-de-Jurisprudencia-em-Teses-.aspx.>. Acessado em 17.07.2024.
[2] Superior Tribunal de Justiça. Jurisprudências em Teses. Disponível em < https://scon.stj.jus.br/SCON/jt/doc.jsp?livre=%27222%27.tit.&_gl=1%2a1tyc6aj%2a_ga%2aMTU2MzYxNzg0OS4xNjQ2MzQ5MDAy%2a_ga_F31N0L6Z6D%2aMTY5NjQ1NTI4OS40MTguMS4xNjk2NDU4NjUyLjYwLjAuMA..> acessado em 18.07.2024.
[3] Superior Tribunal de Justiça. Notícias. Terceira Turma mantém condenação do Google em caso de concorrência desleal com links patrocinados <https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2024/09072024-Terceira-Turma-mantem-condenacao-do-Google-em-caso-de-concorrencia-desleal-com-links-patrocinados.aspx> acessado em 18.07.2024.
[4] LEITE, George S.; LEMOS, Ronaldo. Marco Civil da Internet. Rio de Janeiro: Grupo GEN, 2014. E-book. ISBN 9788522493401. Disponível em: https://app.minhabiblioteca.com.br/#/books/9788522493401/. Acesso em: 18 jul. 2024. Pagina 440/441.
[5] MOTTA, Sylvio. Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Grupo GEN, 2021. E-book. ISBN 9788530993993. Disponível em: https://app.minhabiblioteca.com.br/#/books/9788530993993/. Acesso em: 18 jul. 2024. Pagina 763.
[6] REIS TRINDADE, André Fernando dos. Manual de direito constitucional. São Paulo: SRV Editora LTDA, 2015. E-book. ISBN 9788502230057. Disponível em: https://app.minhabiblioteca.com.br/#/books/9788502230057/. Acesso em: 18 jul. 2024. Pagina 72.