O valor de mercado do bem é a base para o cálculo do ITCMD, diz o STJ. Será?
- Eichenberg, Lobato, Abreu & Advogados Associados
- 6 de fev.
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Em novembro último foi noticiada a prolação de uma decisão, pela 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ), em processo sob relatoria do Ministro Francisco Falcão, que acatou recurso especial interposto pela Fazenda do Estado de São Paulo para autorizar o aumento da base de cálculo do Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doação – ITCMD em um caso concreto. Tal decisão foi proferida no âmbito do AREsp 2.580.956.
Resumidamente, a 2ª Seção do STJ – mais alto tribunal do País competente para análise de questões relacionadas à legalidade – entendeu que a base de cálculo do ITCMD é o valor de mercado do bem transmitido e que o Fisco tem o poder de estabelecer esse valor quando a quantia declarada pelo contribuinte não corresponder aos preços usualmente praticados no mercado.
O racional adotado foi de que “a base de cálculo do ITCMD é o valor de mercado, permitindo ao fisco que proceda ao arbitramento da base de cálculo quando o valor declarado pelo contribuinte seja incompatível com os preços usualmente praticados no mercado. (...) É legal o arbitramento pela Fazenda Pública da base de cálculo do ITCMD, quando entender que o valor venal declarado não corresponde ao valor de mercado do bem”, concluiu o relator. A votação foi unânime.
Referido julgamento causa preocupação, em especial tendo em vista o iminente aumento das alíquotas de ITCMD pelos Estados no contexto da reforma tributária – também dar-lhes carta branca para aumentar as respectivas bases de cálculo sem que ao menos sejam esclarecidos os critérios adequados parece conceder ao ente tributante poderes exacerbados, não necessariamente albergados pela legislação pátria, de imiscuir-se indevidamente na esfera pessoal e patrimonial dos contribuintes, em inobservância até mesmo do princípio da capacidade contributiva.
Veja-se. É indiscutível a relevância de uma adequada fiscalização e arrecadação para o bom funcionamento do Estado. Contudo, o aumento da cobrança do ITCMD em São Paulo, motivado pela busca incessante por receitas, suscita preocupações significativas sobre a legalidade e a legitimidade das técnicas empregadas. Esta atitude do Fisco Paulista representa um sério perigo para o Estado de Direito, uma vez que infringe princípios constitucionais e várias disposições da lei federal.
Com efeito, o Fisco de São Paulo tem enviado Notificações de Instauração de Arbitramento a vários contribuintes, em resposta à transmissão das respectivas declarações de ITCMD, visando a cobrar o tributo com base em valores que superam o valor venal usado para o cálculo, por exemplo, do IPTU. Esta prática fundamenta-se no artigo 11 da Lei Estadual nº 10.705/00, ignorando completamente a Constituição Federal (artigo 150, inciso I), o Código Tributário Nacional – CTN (artigos 148 e 97) e a jurisprudência predominante das cortes superiores, inclusive do próprio STJ, que em ocasiões anteriores julgou casos semelhantes favoravelmente aos contribuintes.
Durante os processos de arbitramento iniciados a partir da emissão daquelas Notificações, a Receita Estadual revê o “valor de mercado” dos imóveis, considerado como base de cálculo do tributo, empregando o “Método Comparativo Direto de Dados do Mercado". Este procedimento se fundamenta em mera busca na internet por anúncios de sites de corretores de imóveis e portais de anúncios online, escolhidos sem critérios claros. Com base nesses anúncios, a Receita Estadual identifica propriedades com características pretensamente semelhantes na mesma área geográfica – desconsiderando-se, portanto, toda e qualquer peculiaridade dos imóveis em questão ou mesmo questões de negociação em regra presentes em situações efetivamente a mercado (compra e venda de imóveis, por exemplo) – e determina o que acredita ser o valor médio do metro quadrado, que é usado para calcular o valor do ITCMD entendido como devido.
Apesar de a Lei Estadual nº 10.705/00, em seu artigo 11, autorizar o procedimento de arbitramento, sua utilização isolada e indiscriminada, isto é, quando o Fisco meramente discorda dos valores declarados pelos contribuintes, sem qualquer indício de ilegalidade, evidencia uma violação clara ao sistema jurídico e ao princípio da legalidade.
A permissão da lei complementar (CTN) à utilização do arbitramento está condicionada estritamente às restrições específicas estabelecidas na própria legislação fiscal do país, nunca podendo ser empregada de maneira arbitrária ou abusiva pelo Fisco, sob risco de nulidade total dos atos realizados.
Permitir o arbitramento exclusivamente de acordo com a vontade do Fisco, sem atender às condições estipuladas no art. 148 do CTN, ou seja, sem a presença, sequer indícios, de omissão ou declarações falsas, deturpa relevantes institutos jurídicos basilares do ordenamento tributário e representa uma violação aos princípios da segurança jurídica e da legalidade.
É conhecido que, quando a razão legal para o ato administrativo não se coaduna aos fatos do caso, o ato é inválido desde sua origem, já que não cumpre requisito fundamental para sua validade no âmbito jurídico, qual seja, a motivação. A doutrina esclarece com clareza o conceito de motivo para fins de atos administrativos: "(ii) motivo: acontecimento no mundo fenomênico que exige ou possibilita a prática do ato. (...)" (p.562, Curso de especialização em direito tributário, Estudos analíticos em homenagem a Paulo de Barros Carvalho, Editora Forense, Rio de Janeiro, 2007).
Enquanto o motivo é pressuposto fático do ato, representado pela "ocorrência da vida real que satisfaz a todos os critérios identificadores tipificados na hipótese tributária", a motivação compõe o próprio ato administrativo, consistindo na descrição do motivo do ato, situando-se no antecedente da norma individual e concreta. Em se tratando de ato de lançamento, o motivo é o próprio evento tributário, ao passo que a motivação constitui o fato jurídico correspondente. O mesmo se verifica no ato de aplicação de penalidade: o motivo é o evento ilícito, sendo o fato da ilicitude introduzido no universo jurídico pela motivação.
Nesse contexto, interpretando-se o artigo 11 da Lei Estadual nº 10.705/00 à luz dos princípios constitucionais mencionados e do artigo 148 do CTN, conclui-se que o arbitramento do ITCMD só é admitido em casos de omissão ou declarações falsas, sob risco de não se tratar de arbitramento, mas sim de arbitrariedade. Na ausência ou não comprovação dessas condicionantes, o arbitramento é nulo, devido aos defeitos materiais inerentes ao conteúdo do ato, isto é, à norma individual e concreta que define o crédito tributário e sua justificativa.
O uso abusivo e ilegal de arbitramento pelo Fisco Paulista – verdadeira arbitrariedade – constitui uma séria infração ao artigo 148 do CTN, além do artigo 97, inciso IV, que determina que apenas a legislação pode modificar a base de cálculo de um imposto. A permissão para modificar a base de cálculo do ITCMD por meio de arbitramento, empregando o "método comparativo direto de dados de mercado" de maneira arbitrária, provoca uma enorme incerteza jurídica e infringe o princípio da reserva legal.
Embora haja evidentes violações à legislação e à Constituição Federal, porém, a Fiscalização Estadual persiste no uso do referido “método” de arbitramento por si própria criado, inclusive quando o contribuinte se utiliza dos valores lançados de ofício pelas prefeituras para o cálculo do IPTU– dados esses únicos fidedignos de utilização nessa hipótese, na medida em que estabelecidos por autoridade fiscal competente (Prefeituras Municipais) e para valoração da propriedade de bens imóveis, em especial tendo em vista não se encontrarem “a mercado” (relembre-se: o ITCMD incide em transmissões gratuitas, decorrentes de herança ou doação). E a esse respeito, apesar de ainda não existir entendimento vinculante proferido pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ/SP), as decisões são em sua maioria favoráveis aos contribuintes.
Além disso, é importante destacar que o STJ, a despeito dessa mais recente decisão, já analisou a questão semelhante em pelo menos outras duas oportunidades. Apesar de também lá ainda não existir um tema recorrente que estabeleça um entendimento vinculante, nota-se um direcionamento inicial da jurisprudência no sentido de excluir a cobrança de ITCMD com base apenas na discordância do Fisco em relação aos valores declarados.
De fato, nessas duas circunstâncias, o TJ/SP rejeitou o arbitramento levado a efeito pelo Fisco Paulista por não ter logrado comprovar qualquer omissão ou declarações inválidas pelo contribuinte; a Procuradoria, por seu turno, por intermédio de recursos especiais, procurou questionar a legalidade da decisão. Contudo, nos casos do AREsp 2.423.122, sob a relatoria da Ministra Maria Thereza de Assis Moura, e do AREsp 2.448.595, sob a relatoria do Ministro Herman Benjamin, os agravos foram aceitos, mas os recursos especiais não, confirmando-se as decisões do Tribunal de Justiça local.
Com isso, conclui-se que está longe de se encerrar a discussão a respeito da validade ou não dos procedimentos de arbitramento levados a efeito pelos Fiscos Estaduais por simples desacordo com os valores declarados pelos contribuintes e em especial quanto aos critérios utilizados para tal arbitramento. Precisaremos aguardar as cenas dos próximos capítulos dessa verdadeira novela.
Paula Beatriz Loureiro Pires
Rafael Figueiredo