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Eichenberg, Lobato, Abreu & Advogados Associados - Especialista em Direito Imobiliário

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A Rescisão de Contrato de Compromisso de Compra e Venda de Imóvel com Dação em Pagamento: A Interpretação do Valor Atribuído ao Bem Móvel

É praxe no mercado a utilização dos Compromissos de Compra e Venda para aquisição de unidades imobiliárias, tanto futuras, as unidades “na planta”, como unidades já disponíveis e que dependem de um fluxo financeiro até a efetiva outorga de escritura.

 

Também não se pode deixar de citar que muitos destes contratos, pelas mais variadas razões, encontram fim prematuro, através de pedidos de rescisão, judicialmente ou não, com restituição das parcelas pagas, integral ou parcialmente.

 

Considerando essas situações de fato e as repercussões jurídicas dela decorrentes, há desdobramentos não tão comuns que podem surgir em casos específicos. Afinal, muito embora a esmagadora maioria dos pagamentos das obrigações sejam por meio do dinheiro em espécie, o que não é diferente nos Compromissos de Compra e Venda, não se pode olvidar de outros meios de pagamento à disposição dos interessados.

 

À luz disso, pode ocorrer a hipótese de que determinado Compromisso de Compra e Venda tenha sido pago por meio de um bem móvel diverso do dinheiro em espécie, configurando uma Dação em pagamento.

 

Partido dessa conjuntura, em situações de rescisão contratual cujo pagamento se deu, integral ou parcialmente, por meio de Dação em Pagamento, torna-se imprescindível analisar o valor atribuído ao bem móvel dacionado, considerando os efeitos da extinção da relação jurídica contratual, porque o fim primordial é o retorno das partes ao status quo ante.

 

Antes adentrar à resposta propriamente dita, é preciso compreender a natureza jurídica dos institutos envolvidos. A dação em pagamento, prevista no Capítulo V do Código Civil, estabelece que o adimplemento de uma obrigação pode ser realizado por meio da entrega de um bem diverso daquele originalmente acordado entre as partes.

 

Segundo o artigo 356 do Código Civil[1], o credor pode consentir em receber uma prestação diversa daquela originalmente devida. Complementarmente, o artigo 357[2] estabelece que, quando o valor do bem dado em pagamento é previamente definido pelas partes, as relações entre elas serão regidas pelas normas aplicáveis ao contrato de compra e venda.

 

Nesse sentido, Silvio de Salvo Venosa aborda a dação em pagamento nos seguintes termos:

 

A dação em pagamento, como se nota, não se restringe, como a princípio demonstrava a lei de 1916, à substituição de dinheiro por coisa. Basta que se substitua, quando do cumprimento da obrigação, o objeto original dela. Trata-se de um acordo liberatório que só pode ocorrer após o nascimento da obrigação. Pode consistir na substituição de dinheiro por coisa (rem pro pecunia), como também de uma coisa por outra (rem pro re), assim como a substituição de uma coisa por uma obrigação de fazer. (2023, p. 262)

 

É possível extrair que a norma jurídica trata a dação em pagamento como uma modalidade de adimplemento da obrigação, de maneira que, existente uma obrigação de pagamento em dinheiro de quantia determinada, ao concordarem as partes que essa quantia será quitada pela dação de um bem diverso, ambas as partes estão atribuindo ao bem o exato valor da obrigação.

 

A entrega da coisa diversa da pactuada, se constituir o valor integral da dívida, quitará o débito nessa exata extensão e formará o manto do ato jurídico perfeito. Não se enxergam motivos pelos quais se possa, com o devido respeito a quem possa entender de forma contrária, revalorar o bem no momento da rescisão.

 

Não é preciso grande esforço para concluir que o ajuste da dação em pagamento é bilateral e conta com aquiescência de quem oferece o bem e de quem aceita. Portanto, se quem entregou o bem o fez por quantia inferior à praticada pelo mercado, ou a que entendia cabível, não cabe, no pedido de rescisão rediscutir o valor atribuído ao bem, afinal, como bem ventilado pela valiosa doutrina acima citada, esse acordo liberatório só pode ocorrer após o nascimento da obrigação a ser quitada, e esta obrigação foi valorada anteriormente.

 

Igualmente, não se pode perder de vista que vigora nos negócios jurídicos o princípio da pacta sunt servanda e o princípio dispositivo, dada a natureza do bem da vida envolvido.

 

Cabe pontuar, ainda, que valor atribuído ao bem deve ser restituído em dinheiro, tal como costumeiramente previsto originalmente nos contratos desta natureza, salvo ajuste em contrário, prestigiando a autonomia da vontade.

 

E essa conclusão se mostra bastante lógica seguindo o caminho trilhado acima. Sendo a dação em pagamento uma alteração no adimplemento, ela se restringe a obrigação quitada; quando há a rescisão do contrato, a obrigação de restituir quantias somente surge depois da entrega do bem e com previsão que não é atingida pela dação em pagamento.

 

Ou seja, se a dação se restringe a uma obrigação de pagamento, ela não pode atingir os efeitos já pactuados para o caso de rescisão contratual e restituição de valores, até mesmo porque além desse critério quanto à amplitude da dação, há também o mencionado critério temporal, isto é, a obrigação de restituir surge após a entrega do bem, anacronismo que não pode ser ignorado, como já explanado.

 

Diante do exposto e considerando as disposições legais e entendimentos extraídos de decisões judiciais que encararam o tema, entende-se que, para a apuração do valor a ser restituído ao adquirente em casos de desfazimento contratual, deve prevalecer o valor atribuído ao bem dado em pagamento no momento da transação; e tal valor deverá, assim, ser restituído em espécie, em conformidade com os parâmetros contratuais e as diretrizes legais aplicáveis, como mencionado ulteriormente.

 

Sobre a validade do valor atribuído pelas partes ao bem dado em pagamento, cabe trazer trecho do acórdão proferido nos autos da Apelação Cível nº 1008358-78.2019.8.26.0451 onde constou que:

 

A ação tem por objeto a rescisão do contrato particular de compromisso de compra e venda (págs. 25/26), onde está expresso de forma clara o valor de R$ 70.000,00 para venda do imóvel, com oferta de entrada mediante entrega de um veículo de propriedade do Autor, e o saldo remanescente, de R$ 60.000,00, a ser quitado em parcelas de R$ 1.000,00, razão pela qual se entende que o valor do veículo foi ajustado em R$ 10.000,00 e não naquele indicado pelo Autor.

Portanto, desnecessária maior dilação probatória, em razão dos termos claros do contrato, que foi firmado sem que o Autor tivesse sua vontade maculada por qualquer vício do consentimento, o que sequer foi por ele alegado.

 

Do acórdão em questão, depreende-se que o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, ao examinar as cláusulas contratuais, concluiu que o contrato é claro e explícito em relação aos termos acordados, dispensando a realização de novas diligências probatórias. Nesse contexto, o valor da transação e a forma de pagamento foram devidamente estabelecidos, e não há necessidade de esclarecimentos adicionais.

 

Além disso, o tribunal destaca a ausência de qualquer vício de consentimento por parte do autor, que, em momento algum, alegou ter sido induzido a erro ou coação na celebração do contrato.

 

A decisão reafirma a importância da clareza nos termos contratuais e a necessidade de que as partes atuem de boa-fé, sem impugnar os acordos firmados sem fundamento legítimo.

 

Ademais, o acórdão proferido na Apelação Cível nº 1014752-84.2019.8.26.0004 aprofunda-se na análise da dação em pagamento e no valor atribuído a ela pelas partes envolvidas, trazendo elementos essenciais para a compreensão dos efeitos dessa forma de quitação no contrato.

 

“(...)

Ficou acordado que o valor de R$ 40.000,00 seria pago pela ré a título de comissão de corretagem para a autora, por meio da dação em pagamento do veículo Honda/City DX MT, ano de fabricação 2014, placas FIK 0629.

A autora aceitou receber o automóvel como pagamento de sua comissão. Ela própria afirmou, em diálogo com a ré, que o preço de mercado do veículo, à época, era R$ 41.000,00 (fl. 131 e Tabela Fipe à fl. 149), acima do valor da comissão ajustado.

O artigo 357 do CC dispõe que, “determinado o preço da coisa dada em pagamento, as relações entre as partes regular-se-ão pelas normas do contrato de compra e venda”.

E, conforme a lição doutrinária de PABLO STOLZE GAGLIANO e RODOLFO PAMPLONA FILHO a respeito da dação em pagamento:

“esta forma especial de pagamento tem origem no Direito Romano, havendo os jurisconsultos, durante muito tempo, discutido a sua natureza e os seus efeitos. Admitia-se, naquela época, a denominada “datio in solutum”, ou seja, a entrega, pelo devedor, de coisa diversa daquela que fora anteriormente convencionada pelas partes. Seguindo a trilha de pensamento do insuperável ANTUNES VARELA, “a dação em cumprimento (datio in solutum), vulgarmente chamada pelos autores de dação em pagamento, consiste na realização de uma prestação diferente da que é devida, com o fim de, mediante acordo do credor, extinguir imediatamente a obrigação”

Especificamente sobre o disposto no artigo 357 do CC, a doutrina acima citada esclarece que:

“se for estipulado o preço da coisa dada em pagamento (o que ocorre ordinariamente com os imóveis), as relações entre as partes serão reguladas pelas normas concernentes à compra e venda, nos termos do art. 357 do CC/2002. Assim, as regras gerais referentes aos riscos da coisa, à invalidade do negócio, e tudo o mais que for compatível com o contrato de compra e venda, será aplicado, no caso, à dação em pagamento”.

Logo, é certo que, com a dação em pagamento do veículo, pelo valor de R$ 40.000,00, foi extinta imediatamente a obrigação da ré de pagar a comissão de corretagem à imobiliária requerente.

Não obstante a menção aos problemas no veículo, é de se salientar que o bem, quando recebido em pagamento, contava com cinco anos de uso e 90.000km, sendo previsível que apresentasse problemas.

Como visto, aceita a dação em pagamento pela autora pelo preço de R$ 40.000,00, a relação entre as partes passou a ser regulada pelas normas concernentes ao contrato de compra e venda.

E, na compra de veículos usados sempre há determinado risco, exatamente porque não se presume que um veículo usado esteja em condições perfeitas, ao contrário do que ocorre na aquisição de um automóvel zero quilômetro.

O adquirente, leigo em conhecimentos mecânicos, na maioria das vezes não consegue identificar a existência de vícios ou mesmo o desgaste de peças importantes do veículo. Por isso, cabe-lhe se cercar de cuidados necessários para examinar o estado real do automóvel que está adquirindo, o que, em regra, se faz por um mecânico de sua confiança, antes da compra.

A autora, mesmo sendo uma empresa experiente na intermediação de negócios, não teve esse cuidado prévio.

Assim, a responsabilidade pela venda posterior do bem, por valor abaixo de R$ 40.000,00, não pode ser imputada à ré, pois estaria dentro da margem inerente ao risco da compra ou da aceitação de um veículo usado como pagamento.” (grifo nosso)

 

No caso analisado, embora o preço de mercado do veículo fosse superior ao valor acordado, a autora aceitou o pagamento na forma da dação, conforme o artigo 357 do Código Civil. A obrigação da ré foi extinta, e as relações entre as partes passaram a ser regidas pelas normas do contrato de compra e venda.

 

A decisão ainda ressalta que, ao tratar da compra de veículos usados, sempre existe um risco, uma vez que o estado do bem pode apresentar desgastes, o que é mais difícil de ser detectado pelo adquirente leigo. Assim, a responsabilidade pela eventual venda posterior do veículo abaixo do valor acordado não pode ser imputada à ré, pois estava dentro da margem de risco característico da compra de bens usados.

 

A semelhança entre ambos os acórdãos é clara, pois ambos ressaltam a validade do valor acordado pelas partes para a dação em pagamento, a extinção das obrigações com base nesse valor e a aplicação das normas do contrato de compra e venda para regular as relações entre as partes, inclusive em caso de rescisão contratual.

 

Diante da análise das disposições legais, da doutrina aplicável e da jurisprudência consolidada sobre a dação em pagamento, conclui-se que, em casos de rescisão de contrato de compra e venda de imóvel com dação em pagamento, o valor atribuído ao bem móvel dado em pagamento deve ser respeitado e considerado na apuração do montante a ser devolvido ao comprador (ou devedor). Esse valor, definido no momento da transação, reflete a intenção das partes e deve ser preservado, independentemente das oscilações do mercado ou do estado do bem no momento da rescisão.

 

A jurisprudência analisada, por meio dos acórdãos citados, reforça a importância da clareza e da boa-fé nas relações contratuais, evidenciando que, uma vez acordado o valor para a dação em pagamento, ele deve prevalecer como parâmetro para o reembolso, em dinheiro, na eventualidade de desfazimento do contrato. A rescisão, portanto, não implica em uma revisão ou alteração desse valor, salvo em casos excepcionais que envolvam vícios do consentimento ou outros defeitos contratuais.

 

Em face disso, o valor atribuído ao bem dado em pagamento na celebração do contrato constitui um critério justo e eficaz para a restituição de valores, assegurando a estabilidade das relações contratuais e a preservação dos princípios da liberdade contratual e da boa-fé objetiva. Dessa forma, a devolução deverá ocorrer com base no montante originalmente acordado, garantindo a equidade entre as partes envolvidas e a efetividade das normas do Código Civil aplicáveis ao caso.

 

Este entendimento, alinhado aos preceitos legais e jurisprudenciais, garante que o desfecho da rescisão contratual ocorra de forma justa e equilibrada, respeitando a vontade das partes e os parâmetros previamente estabelecidos no contrato, em conformidade com os princípios gerais do direito contratual.

 

Arthur Casadei

Ianca Carlesso


 

REFERÊNCIAS

 

BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Institui o Código de Processo Civil. Diário Oficial da União. Brasília, 17 de março de 2015. Acesso em: 25 de novembro de 2024.

 

VENOSA, Sílvio de S. Direito Civil: Obrigações e Responsabilidade Civil. v.2. 23rd ed. Rio de Janeiro: Atlas, 2023. E-book. p.1. ISBN 9786559774692. Disponível em: https://app.minhabiblioteca.com.br/reader/books/9786559774692/. Acesso em: 25 de novembro de 2024.

 

SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. Apelação Cível n. 1008358-78.2019.8.26.0451. Declaratória de rescisão contratual c/c restituição de valores pagos e indenização por perdas e danos. Impugnação à Justiça gratuita afastada. Cerceamento de defesa não caracterizado. Contrato estabelecido em termos claros. [...] Apelantes/Apelados: José da Silva e Pedrina Veríssimo da Silva. Apelados/Apelante: Cicero Santos da Silva. Relator: Des. João Pazine Neto, São Paulo, 22 de julho de 2021. Disponível em: https://esaj.tjsp.jus.br/cpopg/show.do?processo.codigo=CJ000LGCR0000&processo.foro=451&processo.numero=1008358-78.2019.8.26.0451. Acesso em: 25 de novembro de 2024.

 

SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. Apelação Cível n. 1014752-84.2019.8.26.0004. Apelação cível. Comissão de corretagem imobiliária. Ação indenizatória. Sentença de parcial procedência. Apelo da autora. [...] Apelante: Apoena Imóveis Empreendimentos Imobiliários Ltda Apelada: Neuza Maria Miranda. Relator: Des. Morais Putti, São Paulo, 13 de junho de 2024. Disponível em: https://esaj.tjsp.jus.br/cpopg/show.do?processo.codigo=040016RJ90000&processo.foro=4&processo.numero=1014752-84.2019.8.26.0004&gateway=true. Acesso em: 25 de novembro de 2024.


 

[1] Art. 356. O credor pode consentir em receber prestação diversa da que lhe é devida.

[2] Art. 357. Determinado o preço da coisa dada em pagamento, as relações entre as partes regular-se-ão pelas normas do contrato de compra e venda.

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