Estruturas inadequadas podem originar problemas para o incorporador. Saiba como evitá-los
Desde que a lei da multipropriedade imobiliária entrou em vigor, em fevereiro do ano passado, observa-se significativo aumento no interesse de incorporadoras por esse tipo de empreendimento, com destaque para as regiões turísticas do país, como as cidades que compõem a Serra Gaúcha.
Com a regulamentação, ficou mais claro o que pode ou não ser feito, porém é preciso ter cuidado para que o modelo não se confunda com outros produtos do mercado imobiliário, principalmente o condo-hotel.
A advogada Elisa Gonçalves Ribeiro, sócia do escritório Eichenberg e Lobato Advogados, afirma que a estruturação jurídica deve ser pensada desde o momento da compra do terreno, conforme o produto que se deseja desenvolver. “É preciso entender o modelo de negócio pensado pelo cliente, porque o tratamento jurídico é mera consequência desse modelo”, ressalta a especialista.
Com unidades no Rio Grande do Sul e em São Paulo, além de operações em Santa Catarina, o escritório Eichenberg e Lobato tem um portfólio cujo maior número de operações está relacionada ao mercado imobiliário, principalmente em modelos de multipropriedades, multiusos e condo-hotéis, da aquisição do terreno a operações de funding e antecipação de recebíveis.
Confira os principais trechos da entrevista realizada com a advogada Elisa Gonçalves Ribeiro e saiba que cuidados tomar ao estruturar cada um desses produtos.
Smartus: Condo-hotéis, multiusos e multipropriedades? Qual é a diferença entre eles?
Elisa: Tem muitos pontos de convergência entre eles, mas, tecnicamente, são diferentes. A multipropriedade é basicamente a divisão da propriedade em tempo de uso. Essa é uma definição dada pela lei federal 13.777/2018 e que hoje norteia toda a figura de multipropriedade.
Ela é muito vinculada a empreendimentos hoteleiros e de lazer, mas obviamente pode abarcar outros produtos. Pode haver multipropriedade em outros estabelecimentos imobiliários, como um estacionamento, ou uma residência que não seja hoteleira, além de outros bens móveis que não são o foco aqui.
Já o condo-hotel – como o nome sugere – é um hotel mantido em condomínio, destinado para venda, e essa venda está atrelada a um investimento financeiro. O adquirente não busca ser dono do hotel, mas, sim, ter o rendimento que esse hotel vai trazer. Essa figura, por estar atrelada à renda – e não a um produto imobiliário puro, digamos assim – precisa ser explorada por uma operadora hoteleira e o investidor não tem direito a uso e gozo do imóvel, mas ao que a operação hoteleira vai auferir e distribuir em termos de resultado.
Por esse interesse e vocação atrelados ao rendimento, sem o assegurado direito de uso, o condo-hotel é considerado um valor mobiliário, que está sujeito às normas da CVM [Comissão de Valores Mobiliários].
Desde 2018, é necessário passar por um processo de registro de oferta pública na CVM para que sejam realizadas as vendas das unidades (entre 2015 e 2018, a regra era buscar a dispensa desse registro junto ao órgão). Geralmente, o investidor adquire uma unidade. Pode ser uma unidade inteira ou até mesmo fracionada, hipótese em que há o condomínio civil e que pode maximizar a rentabilidade para a incorporadora.
Em um dos cases do escritório, objetivamos o registro, na CVM, de oferta na qual foram disponibilizadas ao mercado não unidades inteiras, e sim fração de unidades. Assim, com ticket menor, maior liquidez e atratividade ao produto, cada adquirente pôde adquirir, neste caso, 25% de uma unidade, ou 50%, 75% ou mesmo 100%. O produto ficou muito mais maleável. Este condomínio civil, que se formara em cada unidade, não seria uma multipropriedade, porque a divisão não está atrelada a tempo de uso. Há múltiplos proprietários que vão dividir os rendimentos daquela suíte, por exemplo.
Você falou que o condo-hotel é regulado pela CVM e a multipropriedade, por uma lei federal. E a diferença é que a multipropriedade dá direito ao uso e o condo-hotel dá direito ao rendimento, correto?
Pode-se dizer que sim. Um cuidado que é preciso ter: dependendo da estruturação do empreendimento em multipropriedade, ele pode ter que ser submetido à CVM. Isso eu vou abordar na palestra [no Fórum Imobiliário da Serra Gaúcha]. Se atrelar essa oferta à obtenção de rendimento para o adquirente, dependendo do foco dado na publicidade e na abordagem, a CVM pode entender que é uma oferta de valor mobiliário e exigir os mesmos trâmites do condo-hotel.
A Smartus já entrevistou alguns incorporadores que atuam com multipropriedade, e eles comentaram que é possível o adquirente da fração alugar o seu tempo de uso, ceder sem cobrar aluguel ou até mesmo vender a unidade. Esse aluguel é considerado rendimento?
É um rendimento, mas se for em caráter muito eventual, se não for preponderante na hora da aquisição, provavelmente não vai ser determinante para o enquadramento como valor mobiliário. A própria CVM, no ano passado, julgou um caso de multipropriedade, e naquele caso específico trouxe parâmetros que podem guiar o enquadramento deste tipo de empreendimento (se valor mobiliário ou não). Nesse caso em específico, ela entendeu que não precisava passar pela normativa dela, mas deixou um alerta do tipo: ‘há casos em que eu vou puxar para a minha lupa’.
Por isso, da estruturação [do negócio] até a forma de venda é importante ter esse conceito em mente para não gerar algo incabível que possa encarar problemas na comercialização e no próprio enquadramento jurídico do produto, implicando em algumas restrições legais, por exemplo.
E o multiuso?
O multiuso é um empreendimento com diversas destinações, como hotel, shopping, uma torre de salas comerciais etc. São empreendimentos únicos dotados de vários produtos imobiliários. Importante – neste tipo de empreendimento – que o empresário pense lá na frente, seja para atrair público, seja para atrair valor para as edificações ou para evitar, eventualmente, que seja necessário doar uma parcela do terreno para o município.
Vai fazer uma matrícula para cada empreendimento (uma para a torre, uma para o shopping e uma para o hotel)? Se fizer isso, terá que doar 20% da gleba para o município, por exemplo, caso o terreno não seja oriundo de prévio parcelamento de solo. Não faz sentido. Os afastamentos a serem respeitados entre torres são igualmente diferentes nas hipóteses de o empreendimento ser um só, na forma de multiuso, ou serem empreendimentos independentes.
Ou, então, vai fazer incorporação desdobrada? Tem que planejar o instrumento para poder, futuramente, por meio de ferramentas jurídicas, ter liberdade para alterar a área sem precisar da anuência de todos os condôminos [na hipótese de, inicialmente, lançar um shopping e vender lojas nesse terreno, por exemplo]. Especialmente porque, lá na frente, o mercado pode mudar em relação à concepção inicial do produto. Há uma série de questões relacionadas a mecanismos jurídicos que no futuro vão trazer conforto, segurança e flexibilidade para esse empreendimento e empreendedor.
Hoje, é tendência agregar em um único terreno um empreendimento residencial e um mall de lojas no térreo, ou ainda, também muito em voga, os apartamentos de menor tamanho, que precisam ter uma estrutura de restaurante, lavanderia etc. Não vai oferecer como serviço, mas vai estruturar como locação, por exemplo.
Também são super relevantes para estes empreendimentos as regras de administração e governança, assegurando independência, onde for fundado, que assim o seja. São empreendimentos complexos, digamos assim, e que, portanto, sempre necessitam ser muito bem pensados e estruturados juridicamente também.
Você comentou do cuidado para que eventualmente não tenha que ceder parte do terreno para a municipalidade. É comum isso acontecer em empreendimentos de multiuso?
Na verdade, essa doação decorre do tamanho do terreno e do fato de ele ser originário ou não de um loteamento anterior. Ela não tem a ver com o tipo de empreendimento que vai ser construído. É uma questão urbanística, tem a ver com a própria divisão da gleba e com as regras atinentes a parcelamento do solo.
Empreendimentos multiuso geralmente usam glebas maiores. Por exemplo: um dono de shopping nos procura porque tem uma área de estacionamento enorme e ele viu que, agora, a cidade cresceu para o lado do shopping e quer colocar uma torre para vender unidades, até porque a área construída do shopping não esgotou o potencial construtivo do terreno. Mas ele vendeu lojas, vai precisar da anuência dos lojistas. Se tivesse planejado uma torre [futuramente], – e hoje as pessoas pensam mais nesse viés – seria feita uma estrutura jurídica que dispensaria a concordância dos demais proprietários no aproveitamento das outras porções de terreno.
A questão do multiuso é mais de planejar o empreendimento, estruturá-lo bem, do que, de repente, fugir da CVM ou atender a uma lei específica. A norma a que se submete é a lei de incorporação imobiliária [Lei 4.591/64]?
Exatamente. Neste evento na Serra Gaúcha, a ideia é trazer esses pontos de novidade em relação à exploração de produtos imobiliários que fazem sentido em cidades como Gramado, Canela, Caxias do Sul etc., que têm viés mais aprimorado para isso. Vamos debater essas soluções e reflexões.
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