O arrendamento rural é a modalidade de contrato agrário em que uma das partes cede à outra o uso e gozo do imóvel rural visando a exploração de atividade agrícola, pecuária, agroindustrial, extrativista ou mista, em troca de certa retribuição em valor fixo. Embora o arrendamento normalmente se configure como uma modalidade contratual autônoma, independente de outra relação jurídica, também pode ser pactuado como um vínculo obrigacional acessório, preso a outra contratação, considerada principal, como a compra e venda, por exemplo.
Quando vinculado à compra e venda, o arrendamento será celebrado como um pacto acessório, também denominado de cláusula adjeta ou pacto adjeto e tem por finalidade dar maior variabilidade ao contrato de compra e venda, isto é, maior poder de negociação entre as partes. Como pacto acessório, ele irá depender do contrato de compra e venda e pode ser estabelecido por termo autônomo ou mesmo por cláusula, no próprio instrumento de venda.
Em recente e importante decisão, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, sob a relatoria da Ministra Nancy Andrighi (RESP nº 1.944.616 – MT, julgado em 08/02/2022), em processo que tinha por objeto contrato de compra e venda com pacto adjeto de arrendamento rural, decidiu, unanimemente, que a violação à boa-fé objetiva em relação ao cumprimento da avença acessória enseja a rescisão parcial do contrato e o pagamento de indenização à parte prejudicada.
No caso enfrentado pelo STJ, as partes pactuaram a venda de área rural (fazenda) e, ainda, como ajuste dela decorrente, o arrendamento da área aos vendedores, para exploração florestal com manejo sustentável, por tempo estimado de 6 (seis) anos. No entanto, a atividade de exploração florestal restou frustrada, tendo em vista que o comprador não cumpriu as obrigações que lhe cabiam, deixando de assinar documentos essenciais para a obtenção de licenças junto aos órgãos ambientais e, assim, impedindo que os vendedores pudessem desenvolver sua atividade licitamente sobre a área.
Diante disso, os vendedores ingressaram em juízo postulando a rescisão parcial do contrato (em relação ao pacto de arrendamento) e o pagamento de indenização. No tribunal estadual houve o reconhecimento expresso de violação da boa-fé objetiva não tendo sido acolhido, entretanto, o pedido de rescisão contratual, o que levou a controvérsia ao exame do STJ.
A boa-fé objetiva, lembra-se, pode ser definida como sendo a exigência de conduta legal dos contratantes, estando relacionada com os deveres anexos ou laterais de conduta, que são inerentes a qualquer negócio jurídico, independentemente de previsão no instrumento negocial. Podem ser citados como deveres anexos, entre outros: dever de cuidado em relação à outra parte negocial; dever de respeito, dever de agir conforme a confiança depositada; dever de colaboração ou cooperação; dever de lealdade e probidade; dever de agir com honestidade; e dever de agir com razoabilidade e equidade.
Conforme já consagrado na doutrina e jurisprudência, a quebra dos deveres anexos acima referidos gera a violação positiva do contato, com responsabilização objetiva daquele que desrespeita a boa-fé objetiva (Enunciado n. 24 CJF/STJ). E nesse sentido foi a decisão festejada da Terceira Turma do STJ no RESP, a qual, ao prover o recurso da parte autora (vendedores), reformou a decisão do Tribunal Estadual para decretar a rescisão parcial do negócio e impor o dever do comprador de indenizar os vendedores pelos prejuízos materiais decorrentes da frustração do pacto de arrendamento para exploração florestal na área rural objeto da contratação.
Conforme o voto da Relatora do acórdão, o Tribunal de origem, ao entender que o inadimplemento do recorrido não deveria ensejar a resolução (parcial) da avença, acabou por violar o art. 475 do CC, cujo conteúdo normativo assegura expressamente à parte lesada pelo inadimplemento, caso prefira não exigir o cumprimento do acordo, pedir a resolução do contrato. Como esclareceu a digna relatora, a faculdade que a parte prejudicada pelo inadimplemento tem de postular a resolução do negócio jurídico consiste em direito potestativo que lhe assiste em função da norma precitada. E ainda enfatizou a Ministra: De acordo com a doutrina especializada, “também o descumprimento de deveres laterais, decorrentes da incidência do princípio da boa-fé, pode ensejar a resolução, se for capaz de comprometer o interesse do credor na utilidade da prestação” (TEPEDINO, Gustavo. Fundamentos do direito civil, vol. 3. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021, p. 159, ed. Eletrônica).
A decisão em comento merece destaque, em primeiro lugar, por versar sobre a possibilidade de rescisão de parte do negócio jurídico (justamente a que diz respeito ao pacto adjeto de arrendamento rural) com imputação de dever de indenizar à parte inadimplente, mas restando mantida a avença principal, de compra e venda.
Outro aspecto a ser ressaltado diz respeito ao reconhecimento do direito à rescisão contratual com base em obrigações não previstas expressamente no contrato, mas decorrentes dos deveres anexos ínsitos à contratação, em virtude da regra da boa-fé objetiva (art. 422 do Código Civil). A decisão demonstra que a boa-fé, que nasceu como um princípio consagrado na doutrina e que posteriormente restou positivado na lei civilista, tem servido de forte fundamento nas decisões dos tribunais pátrios, inclusive em relação aos contratos típicos, regidos por lei específica, como o arrendamento rural, o que merece ser festejado pelos operadores do direito.
Renata Silva Fagundes
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