No ano passado, foi publicado o Decreto nº 20.806, de 27 de novembro de 2020, do Município de Porto Alegre, RS, que, entre outras disposições, revogou o parágrafo único do art. 56 do Decreto Municipal nº 15.416/2016, regulamento do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza – ISSQN, da capital gaúcha.
O dispositivo revogado dispunha sobre a base de cálculo do ISSQN, nos serviços de registros públicos, cartorários e notariais. O preceito expressamente consignava não integrar o próprio imposto o preço do serviço, enquanto base de cálculo do tributo, correspondente ao valor dos emolumentos cobrados.
Na vigência do parágrafo único do art. 56 do Decreto Municipal nº 15.416/2016, a legislação expressamente reconhecia, portanto, a necessidade de o ISSQN ser calculado “por fora” do próprio preço dos emolumentos. Ou seja, o imposto municipal não compunha a sua própria base de cálculo. A regra era salutar, por expressar o óbvio: diante do tabelamento dos valores dos emolumentos, fixados em lei e controlados pela Corregedoria-Geral de Justiça, não haveria como se admitir a inclusão do valor do imposto municipal na própria composição dos preços.
Com a revogação do dispositivo em exame, o ISSQN passa a ser apurado com a inclusão do valor do próprio imposto na sua base de cálculo, mediante o denominado cálculo “por dentro”.
Exemplifica-se. No regime anterior, em que assegurado o cálculo “por fora”, na cobrança de emolumentos cujo montante correspondesse a R$ 10,00 (dez reais), com um ISSQN calculado à alíquota de 5% (cinco por cento), o imposto devido era equivalente a R$ 0,50 (cinquenta centavos), e o total a ser pago pelo tomador de serviços alcançava R$ 10,50 (dez reais e cinquenta centavos).
Com a mudança da sistemática de apuração, o valor do ISSQN será considerado como integrante da base de cálculo do próprio imposto (cálculo “por dentro”). Com isso, os mesmos emolumentos de R$ 10,00 (dez reais) gerarão uma cobrança de imposto de R$ 0,526 (cinquenta e dois centavos e seis décimos de centavo), resultando em um pagamento, pelo tomador de serviços, de R$ 10,53 (dez reais e cinquenta e três centavos). Com isso, o imposto a ser pago (R$ 0,526) representará 5% (cinco por cento) do total desembolsado pelo tomador de serviços (R$ 10,53). A base de cálculo do ISSQN passa a ser o preço dos emolumentos, mais o imposto incidente sobre esses emolumentos, em um cálculo reverso que resulta no recolhimento, aos cofres municipais, do equivalente a 5% (cinco por cento) do total cobrado junto ao tomador dos serviços.
O regime de cálculo do imposto “por dentro” não é estranho ao sistema tributário brasileiro. Desde a instituição do antigo ICM, atual ICMS, o imposto sobre operações de circulação de mercadorias é calculado de forma a que o montante do tributo integre a sua própria base de cálculo. Assim dispunha já o Decreto-Lei nº 406/68 (art. 2º, 7º), como assim prevê a vigente Lei Complementar nº 87/96 (inciso I do § 1º do art. 13). A própria Constituição da República de 1988 conta com disposição nesse sentido, em relação ao ICMS (alínea “i” do inciso XII do § 2º do art. 155).
O cálculo “por dentro” do ICMS gera distorções cotidianamente verificadas por consumidores de mercadorias e serviços sujeitos a esse imposto estadual, com a diferenciação entre a alíquota nominal e a alíquota efetiva ou real. Em uma conta de energia elétrica, no valor final de R$ 100,00 (cem reais), tributada à alíquota nominal de 25% (vinte e cinco por cento), o imposto incidente representa R$ 25,00 (vinte e cinco reais), de modo que a energia em si corresponde a R$ 75,00 (setenta e cinco reais). A alíquota efetiva, considerando a proporção entre o ICMS (R$ 25,00) e o valor da energia (R$ 75,00), equivale a 33,33% (trinta e três inteiros e trinta e três décimos por cento). O consumidor suporta mais imposto do que a alíquota nominal indica.
Porém, tratando-se de ISSQN, não há autorização normativa, seja no Texto Constitucional, seja na lei complementar (Lei Complementar nº 116/2003), para a adoção do regime de cálculo “por dentro”. A Lei Complementar nº 116/2003, a quem cabe definir a base de cálculo do imposto, por exigência também da Constituição (alínea “a”, in fine, do inciso III do art. 146), apenas prevê que a base de cálculo do ISSQN é o “preço do serviço” (caput do art. 7º). É no mínimo questionável, portanto, a compatibilidade da nova sistemática adotada pelo ente municipal gaúcho com as normas nacionais de regência do imposto.
A mudança na base de cálculo do ISSQN, para serviços notariais e registrais de Porto Alegre, parece sutil. Mas as repercussões, multiplicadas pelo volume de operações realizadas diuturnamente por notários e registradores, serão bastante relevantes. E, como é usual, o grande prejudicado será o consumidor dos serviços, que sofrerá a repercussão, no preço pago, de uma carga tributária aumentada sem maior alarde, nem lei.
Edmundo Cavalcanti Eichenberg
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