Recentemente foram noticiadas duas situações aparentemente desconectadas entre si, mas que em conjunto levam a uma importante reflexão, qual seja, “planejamento patrimonial e sucessório” e “blindagem patrimonial” não são um mesmo instituto; ao contrário, têm meios e objetivos bastante diversos, sendo aquele primeiro válido, mas não este último.
As referidas situações são:
(i) a publicação do acórdão proferido pela 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) nos autos do Recurso Especial nº 2.095.942/PR, trazendo o seguinte entendimento:
“3. Embora se reconheça que a desconsideração inversa da personalidade jurídica seja medida excepcional, no presente caso, ficou suficientemente comprovada a finalidade fraudulenta das negociações envolvendo a empresa recorrida, especialmente quanto ao imóvel em questão. 4. Demonstrados os requisitos de desvio de finalidade e o abuso da personalidade jurídica, utilizada para ocultar e desviar bens pessoais dos executados, ficam preenchidos os requisitos legais para desconsideração da personalidade jurídica, na conformidade do art. 50 do CC.”;
(ii) a deflagração pela Secretaria da Fazenda Paulista da Operação Loki, por meio da qual milhares de contribuintes do Estado de São Paulo foram notificados a regularizar valores supostamente devidos e não recolhidos de Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação de Quaisquer Bens ou Direitos – ITCMD em razão de possíveis simulações de compra e venda de participação societária para acobertar doações de quotas de empresas.
A relação entre esses casos está no fato de que ambos tratam de circunstâncias em que pessoas jurídicas foram utilizadas inadequada e indevidamente na tentativa de os respectivos sócios se furtarem ao pagamento de obrigações, no primeiro caso de natureza cível (honorários), no segundo de natureza tributária (ITCMD) – trata-se daquilo que ficou conhecido no mercado como “blindagem patrimonial”, e que nada tem a ver com o verdadeiro planejamento patrimonial e sucessório.
De fato, o Conselho Nacional de Justiça – CNJ estabeleceu o seguinte enunciado, de nº 283: “É cabível a desconsideração da personalidade jurídica denominada ‘inversa’ para alcançar bens de sócio que se valeu da pessoa jurídica para ocultar ou desviar bens pessoais, com prejuízo a terceiros.”. Explica-se:
No tocante à primeira situação reportada, nos últimos anos, tem-se observado um aumento significativo no número de empresas familiares que atuam como holdings no Brasil. O termo "holding", derivado do verbo inglês "to hold", que significa controlar, manter ou guardar, refere-se a empresas que não realizam atividades operacionais diretas, mas que, entre outras atividades possíveis, detêm e gerenciam participações em outras sociedades.
As holdings familiares são uma maneira altamente profissional e eficiente de administrar o patrimônio familiar no âmbito de projetos legítimos de planejamento patrimonial e sucessório, porque profissionalizam a gestão dos ativos familiares e separam os riscos da atividade empresarial do patrimônio pessoal, além de possibilitar a organização e a definição do processo de sucessão dos titulares desse patrimônio, de forma a minimizar possíveis conflitos familiares e tornar mais eficientes (e potencialmente menores) as incidências tributárias.
Contudo, apesar de seu objetivo primordial – e lícito – de trazer eficiência patrimonial e sucessória, não raras vezes as holdings vêm sendo indevidamente utilizadas para aquilo que se convencionou chamar de “blindagem patrimonial”, desvinculando-se o patrimônio idôneo do núcleo familiar, na tentativa de os sócios se furtarem ao pagamento de dívidas no mais das vezes sabidamente devidas, seja por eles próprios, seja por empresas operacionais por eles detidas, caracterizando-se uma verdadeira ocultação patrimonial e um abuso da personalidade jurídica.
Dessa forma, embora a prática de constituir holdings familiares tenha se disseminado consideravelmente, especialmente para fins de planejamento patrimonial e sucessório, há preocupações legítimas quanto ao seu uso para ocultar ou “blindar” patrimônios pessoais de credores. Isso configura um abuso da personalidade jurídica da empresa, desviando-se da finalidade originalmente estabelecida e autorizando medidas extremas, como a desconsideração inversa da personalidade jurídica, ou seja, a responsabilização da holding pelos atos de seus controladores, quando estes agem em desacordo com os interesses legítimos de terceiros, conforme entendimento do CNJ e do STJ, acima reportados.
Já no que concerne à segunda situação, ainda que não tenha sido desconsiderada a personalidade jurídica das empresas, o foram os negócios jurídicos entendidos pela Fiscalização Estadual como simulados: desconsiderou-se a compra e venda de participações societárias de holdings, entre familiares e, muitas vezes, por valores considerados irrisórios, porque inferiores ao valor de mercado ou mesmo ao custo de aquisição da participação vendida, afirmando-se pela ocorrência alternativa de doações, caracterizando-se fatos geradores do ITCMD.
Por meio da Operação Loki aos contribuintes paulistas foi concedida a oportunidade de, encontrando-se na situação acima, espontaneamente transmitirem as declarações de ITCMD e recolherem os valores devidos. Não sendo aproveitado referido prazo e vindo a ser efetivamente constatada a irregularidade em procedimento fiscalizatório próprio, a constituição do débito de ITCMD será acompanhada da exigência de multa de ofício de até 100% e juros, bem como reporte de natureza penal, para averiguação de crime de sonegação fiscal, devendo ser observados o devido processo legal e o princípio da ampla defesa e contraditório.
Como visto, as situações relatadas não estão diretamente relacionadas entre si, mas exemplificam formas indevidas e inadequadas de planejamento patrimonial e sucessório – leia-se, “blindagem patrimonial” –, por meio da utilização ilícita de institutos primordialmente lícitos – abuso de forma –, mas de modo a tentar escusar o pagamento de débitos devidos ou artificialmente impedindo o próprio nascimento de obrigações.
Ou seja, blindagem patrimonial não se trata de forma alguma de efetivo planejamento patrimonial e sucessório, que, como o próprio nome diz, pretende, por meio de planejamento, dar maior eficiência à condução dos negócios familiares, de modo inclusive a antecipar-se a potenciais riscos e problemas, mas sem promessas vazias de evitar a qualquer custo o pagamento de valores devidos, tributários ou não.
O planejamento patrimonial e sucessório é ampla e fortemente aconselhável; da blindagem patrimonial deve-se manter distância.
Luis Felipe Felix Santos
Paula Beatriz Loureiro Pires