A Lei nº 13.105/2015, conhecida como o Novo Código de Processo Civil, consolidou o incentivo aos métodos alternativos de resolução de disputas como uma opção a um Poder Judiciário abarrotado. Em seu artigo 3º, inclusive estabeleceu que “a conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial”[1].
Assim, cada vez mais tem-se ampliado a utilização de outros meios de resolução de disputas.
Diante deste contexto, se torna imprescindível referir o instituto do dispute board (ou comitê de prevenção e solução de disputas), que justamente é um método alternativo de solução de conflitos que ganha, cada vez mais, espaço no Brasil.
O dispute board é um mecanismo extrajudicial de solução de controvérsias que busca resolver conflitos na área corporativa, especialmente em relação a contratos de longa duração. Dito mecanismo se dá através da formação de um comitê, composto por um ou mais profissionais independentes, que acompanham de forma periódica o andamento do contrato.
De acordo com a definição extraída do site da Câmara de Comércio Internacional — CCI:
Os dispute boards são organismos independentes compostos por um ou três membros, geralmente estabelecido mediante a assinatura ou início da execução de um contrato de médio ou longo prazo, para ajudar as partes a evitar ou superar quaisquer divergências ou litígios que possam surgir durante a execução do contrato. Normalmente utilizado em projetos de construção, os Dispute Boards também são eficientes em outras áreas, incluindo pesquisa e desenvolvimento (P&D), propriedade intelectual (PI), partilha de produção, e acordos de acionistas[2].
Para Fernando Marcondes dispute board “é um comitê formado por profissionais experientes e imparciais, contratado antes do início de um projeto de construção para acompanhar o progresso da execução da obra, encorajando as partes a evitar disputas e assistindo-as na solução daquelas que não puderem ser evitadas, visando à solução definitiva”[3]. Na mesma linha, Bruno Rabelo dos Santos refere que “o dispute board constitui um modelo alternativo de solução de conflitos: forma-se um comitê imparcial e tecnicamente capaz que acompanha a execução de contratos, procurando defendê-los de interesses individuais, das partes; seu objetivo é o cumprimento do contrato”[4].
Vislumbra-se, assim, que o dispute board possui condão de fornecer um gerenciamento da relação entabulada entre as partes, prevenindo, inclusive, a existência de conflitos e falhas na comunicação.
Existem vários modelos de dispute boards. Eles são diferenciados por seu papel dentro do projeto, pelo número de membros e pelo seu funcionamento. O Centro de Arbitragem e Mediação da Câmara de Comércio Brasil-Canadá (CAM-CCBC) esclarece que “o mecanismo pode ser utilizado em três modalidades: o dispute review board (DRB), que aconselha as partes com sugestões apenas; o dispute adjucation board (DAB), no qual o comitê desempenha função decisória, impondo as soluções; e o combined dispute board (CDB), que pode tanto emitir recomendações não vinculantes quanto proferir decisões vinculantes”[5].
Em outras palavras: este método pode ter caráter de recomendação (DRB – dispute review board), de decisão vinculativa até a solução da disputa via arbitragem ou ação judicial (DAB – dispute adjudication board) ou, por fim, combinado (CDB – combined dispute board), podendo ter eventual caráter de recomendação ou vinculativo conforme determinadas condições, desde que favoreça a continuidade da obra.
Ou seja, as partes podem optar por apenas pactuar a instalação e a criação dos dispute boards, sem detalhar o seu funcionamento, ou estabelecer que o cronograma de funcionamento será definido pelos membros do dispute board indicados no contrato, ou ainda, indicar uma instituição para compor o mesmo, ficando a critério das partes adotar ou não o método de funcionamento disciplinado por aquela instituição por eles eleita no contrato.
Sendo assim, resta claro que o dispute board possui regramento livre, haja vista que pode sofrer alteração conforme o modelo eleito e as disposições contratuais pactuadas entre as partes.
Possui, ainda, características próprias, as quais têm gerado um resultado extremamente positivo. Veja-se que de acordo com os dados da Dispute Resolution Board Foundation, após o surgimento do conflito, 99% (noventa e nove por cento) dos casos que usam dispute boards são encerrados em menos de 90 (noventa) dias, e 98% (noventa e oito por cento) das disputas restam solucionadas[6].
Mais que isso, de acordo com Rodrigo Carvalho Polli e Luciano Elias Reais, “estatísticas mundiais têm evidenciado que, em contratos acompanhados por um comitê de resolução de disputadas, 97% (noventa e sete por cento) dos litígios surgidos durante a execução desses contratos e resolvidos pelo comitê não foram objeto de questionamento pelas partes envolvidas”[7].
Diante deste cenário, sobreveio a nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos ("LLCA"), que, em seu capítulo XII, titulado "Dos meios alternativos de resolução de controvérsias", estabelece, nos artigos 151 a 154, a possibilidade de utilização de dispute boards como meio alternativo de prevenção e resolução de controvérsias.
Vislumbra-se, assim, a possibilidade de não ser determinada uma medida unilateral e coercitiva por parte do ente público, mas sim a chance de as partes negociarem e chegarem a um consenso acerca da melhor forma a ser seguida.
Vale mencionar que este novo método de resolução de conflitos se mostra ainda mais atrativo ante ao dado aferido pelo Conselho Nacional de Justiça através de um “Diagnóstico sobre Obras Paralisadas” no sentido que, no âmbito federal do Brasil, em 2021 existiam 14 (catorze) mil obras públicas paralisadas, totalizando um investimento público de nada menos do que R$ 144 bilhões de reais, com R$ 10 bilhões já aplicados[8].
A paralisação de obras públicas não produz tão somente reflexos financeiros. Conforme lecionam Rodrigo Carvalho Polli e Luciano Elias Reis, a paralisação de obras públicas “consome os recursos nela aplicados sem gerar retorno para a sociedade”, “além de limitar o crescimento econômico do país, por interromper a movimentação da economia local com a restituição de empregos diretos e indiretos gerados”[9].
Como se não bastasse, existem também os prejuízos sociais, tendo em vista que a população permanece privada “do benefício principal da política pública que viria a gerar e mantendo a situação de não atendimento adequado de parte da população nos hospitais públicos, de falta de creches para as crianças de falta de esgotamento sanitário para a população dentre outros”[10].
Portanto, este método alternativo de resolução de conflitos tem gerado reflexos positivos ao ponto de ter sido regularizada a sua adoção por parte da Administração Pública. Em que pese a sua aplicação já tenha sido disseminada em países como os Estados Unidos, no Brasil este método é bastante recente.
No Estado do Rio Grande do Sul, especificamente, recentemente sobreveio a Lei nº 15.812/2022, a qual prevê a instituição de Comitê de Prevenção e Solução de Disputas em contratos administrativos continuados. Dita legislação, assim como já havia sendo previsto em outras leis sobre o assunto, estabelece, em suma, a natureza revisora, adjucativa ou híbrida do comitê, além da composição do painel por meio de três pessoas capacitadas tecnicamente e de confiança das partes. No mesmo sentido, restou ajustada a possibilidade de revisão da decisão do comitê pelo juízo estatal ou arbitral, a obediência ao princípio da publicidade, além dos impedimentos a que estão sujeitos os membros do comitê e a sua equiparação ao funcionário público.
Diante deste contexto, surge o questionamento: ante aos efeitos positivos oriundos deste instituto, seria possível ou interessante aplicá-lo em obras privadas?
Como é de conhecimento notório, obras de infraestrutura de grande porte são desenvolvidas no decurso de vários anos. A construção de empreendimentos imobiliários igualmente demanda expressivo período de tempo para a sua conclusão, ainda mais quando expostas a efeitos e a agentes não previstos no início da negociação e das obras.
Para a realização do projeto e da sua execução é imprescindível o acompanhamento próximo de todas as etapas, inclusive mediante a gestão de pessoas e finanças, além da análise das legislações vigentes e dos regulamentos específicos dos órgãos públicos. Isso porque os contratos de construção civil são complexos e envolvem inúmeras disciplinas e subdisciplinas[11]. Mais que isso, os contratos de longa duração possuem uma outra dimensão particular: as próprias obrigações das partes se projetam e se estendem largamente no tempo, podendo se tornar cada vez mais onerosas.
Por essa razão, se pode afirmar que nestes casos os contratantes ficam sujeito à força transformadora das circunstâncias supervenientes ao momento de sua conclusão, oportunidade na qual se estabelece o que Judith Martins-Costa[12] define como o sinalagma genético.
Enquanto isso, no dispute board as partes podem ajustar a realização de reuniões periódicas nas obras, as quais possibilitam que eventuais impasses sejam resolvidos antes de sua instauração mediante o estímulo do diálogo entre as partes. Gize-se que o acompanhamento da obra pelo comitê não se dá apenas por meio de documentos enviados pelas partes, mas também mediante visitas regulares in loco, o que corrobora, ainda mais, com a rápida solução de eventuais impasses. Este procedimento inclusive possibilita que eventuais disputas sejam revolvidas paralela ou posteriormente aos trabalhos, mantendo-se sempre a prioridade quanto ao cumprimento e finalização do contrato firmado.
Sendo assim, considerando-se que o fator tempo é extremamente importante nos contratos da construção, a adoção deste método alternativo de resolução de conflitos se mostra ainda mais atrativo. Neste tocante, Bruno Rabelo dos Santos refere o seguinte:
Além disso, fator já considerado, e de extrema importância é a diminuição da litigiosidade nos contratos e a celeridade na resolução de conflitos; o baixo custo, se comparado a outros métodos alternativos e ao seu papel em contratos de valor elevado; e finalmente, a possibilidade de integração de contratos incompletos – justamente por, no comitê, os especialistas integrantes conhecerem seu contrato desde sua formulação e em todas as suas etapas – e maiores certezas em relação às situações decorrentes de contratos complexos[13].
Diante deste cenário e considerando que problemas podem ter início desde o início das obras, até o seu término, o dispute board é uma importante ferramenta para a solução de conflitos, sobretudo na construção civil.
Espera-se, assim, que os dispute boards passem a fazer cada vez mais parte da realidade brasileira, especialmente no âmbito do mercado da construção civil, que em muito se beneficiará com um método que busca evitar controvérsias e, quando isso não for possível, solucionar o impasse da forma mais célere e benéfica possível, para ambas as partes.
Marina Kremer Cauduro
[1] POLLI, Rodrigo Carvalho. REIS, Luciano Elias. A relevância do dispute board como ferramenta de consensualidade para a legitimidade e eficiência da Administração Pública na nova Lei de Licitações. Revista de Contratos Públicos: RCP, Belo Horizonte, v.11, n.20, p.167-186, set.2021/fev.2022. [2] COMMERCE, Brasil International Chamber of. ICC Brasil. Disponível em http://iccbrasil.com/ Acesso em 15 de maio de 2022. [3] MARCONDES, 2011 apud VAZ, Gilberto José. Os Dispute Boards como método alternativo de resolução de disputas na indústria da construção. Revista de Arbitragem e Mediação. Vol. 11, São Paulo: Ed. RT, abr-jun/2014, p. 327. [4] SANTOS, Bruno Rabelo dos. Dispute board: percursos e usos no direito brasileiro. Revista de Direito Público da Economia: RDPE, Belo Horizonte, v.19. n.75. p. 37-54, jul./set. 2021. [5]COMITÊ DE PREVENÇÃO E SOLUÇÃO DE DISPUTAS. Disponível em: https://ccbc.org.br/cam-ccbc-centro-arbitragem-mediacao/resolucao-de-disputas/dispute-boards/ Acessado em 26/03/2022 [6] The Dispute Resolution Board Foundation (DRBF). [7] POLLI, Rodrigo Carvalho. REIS, Luciano Elias. A relevância do dispute board como ferramenta de consensualidade para a legitimidade e eficiência da Administração Pública na nova Lei de Licitações. Revista de Contratos Públicos: RCP, Belo Horizonte, v.11, n.20, p.167-186, set.2021/fev.2022. [8] CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Diagnóstico sobre Obras Paralisadas. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2019/11/relatorio_obras_paralisadas-1.pdf, Acessado em 21/05/2022 [9] POLLI, Rodrigo Carvalho. REIS, Luciano Elias. A relevância do dispute board como ferramenta de consensualidade para a legitimidade e eficiência da Administração Pública na nova Lei de Licitações. Revista de Contratos Públicos: RCP, Belo Horizonte, v.11, n.20, p.167-186, set.2021/fev.2022. [10] POLLI, Rodrigo Carvalho. REIS, Luciano Elias. A relevância do dispute board como ferramenta de consensualidade para a legitimidade e eficiência da Administração Pública na nova Lei de Licitações. Revista de Contratos Públicos: RCP, Belo Horizonte, v.11, n.20, p.167-186, set.2021/fev.2022. [11] GIL, Fabio Coutinho de Alcântara. A onerosidade de excessiva em contratos de engineering. 2007. 142 f. Tese (Doutorado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007. p. 30. [12] MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: critérios para sua aplicação. 2. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018. p. 648. [13] SANTOS, Bruno Rabelo dos. Dispute board: percursos e usos no direito brasileiro. Revista de Direito Público da Economia: RDPE, Belo Horizonte, v.19. n.75. p. 37-54, jul./set. 2021.