A Câmara dos Deputados aprovou, em 07.07.2023, o texto da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 45, trazendo significativas mudanças no sistema tributário brasileiro. O projeto foi encaminhado ao Senado Federal, casa legislativa em que precisará ser novamente aprovado, por maioria de três quintos, em dois turnos de votação, para que a emenda entre em vigor.
O maior destaque da PEC 45 certamente se encontra na instituição de novos tributos sobre o consumo, em substituição aos atuais. O ICMS, de competência dos Estados, e o ISSQN, de competência dos Municípios, serão substituídos pelo Imposto sobre Bens e Serviços – IBS. Na esfera federal, a COFINS e o PIS serão substituídos pela Contribuição sobre Bens e Serviços – CBS. A emenda também prevê a extinção do Imposto sobre Produtos Industrializados – IPI, de competência da União, com a criação do imposto sobre bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente, denominado Imposto Seletivo (IS).
A justificativa trazida para a substituição de tributos regrada na PEC 45 não se encontra na redução da carga tributária, apesar de o Brasil contar com expressiva tributação sobre o consumo, em comparação com países em desenvolvimento ou mesmo com nações desenvolvidas (a média dos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico - OCDE expressa uma tributação sobre o consumo de 19,2%;[1] no Brasil, a alíquota mais usual apenas do ICMS é de 17%, a que se somam as alíquotas de 7,6% de COFINS e 1,65% de PIS, na indústria e no comércio em geral). Ao revés, o texto do projeto prevê expressamente a manutenção da atual carga tributária, inclusive dispondo sobre um período de transição, de 2026 a 2033, iniciando com a introdução do IBS, com alíquota de 0,1%, e da CBS, com alíquota de 0,9%, em 2026, a extinção da COFINS e do PIS, em 2027, permanecendo apenas a CBS, no plano federal, e a entrada proporcional do IBS, ao longo de 2029 a 2032, com a extinção, também proporcional, do ICMS e do ISSQN. Constituindo a tributação sobre o consumo uma das formas mais injustas de se gerar receitas públicas ao fisco, diante da virtual irrelevância da capacidade econômica do destinatário final do tributo, o consumidor, é quase paradoxal a mesma PEC insistir, com o novo § 3º do art. 145 da Constituição, que o sistema tributário brasileiro deve observar o princípio da “justiça tributária”.
Como amplamente divulgado, o mote da PEC 45 está na afirmada simplificação dos tributos sobre o consumo no Brasil. O IBS, cuja receita pertence aos Estados e aos Municípios, terá legislação única, aplicável em todo o território nacional. Promete-se, com isso, a expressiva redução da complexidade do sistema tributário brasileiro, muito vinculada às legislações e interpretações sobre o ICMS, em cada um dos vinte e seis Estados da Federação e do Distrito Federal, a que se somam as legislações dos mais de cinco mil municípios, sobre o ISSQN. Também atrelada à legislação única e uniforme do IBS, propaga-se a redução da chamada guerra fiscal entre Estados e entre municípios, pela impossibilidade de concessão unilateral de benefícios fiscais por um ente tributante. Os regimes diferenciados e as alíquotas reduzidas serão instituídos por lei complementar e deverão ser uniformes em todo o território.
A par da simplificação gerada pela legislação única, outros atributos também previstos na PEC contribuiriam para a melhoria na aplicação e na interpretação da legislação tributária acerca de tributos sobre o consumo. Tanto o IBS, como a CBS serão não cumulativos, compensando-se o tributo devido pelo contribuinte com o montante cobrado sobre todas as operações anteriores. Regra constitucional semelhante já existe para o ICMS, para o IPI e mesmo para as contribuições da COFINS e do PIS. Porém, a interpretação do fisco e mesmo a jurisprudência dos tribunais superiores sempre foram bastante restritivas, quanto à amplitude da não cumulatividade e do consequente direito dos contribuintes ao aproveitamento de créditos fiscais gerados pelo tributo incidente nas operações anteriores. A promessa é de que a nova redação da PEC insira os contribuintes brasileiros em um “admirável mundo novo”, em que a não cumulatividade passará a ser devidamente observada e respeitada. Limitações ao aproveitamento de créditos, em tributos não cumulativos, construídas com base no reconhecimento do abatimento apenas de “créditos físicos”, gerados por bens incorporados, fisicamente, ao produto ou mercadoria industrializado ou comercializado (IPI e ICMS), ou com base em insumos qualificados como “essenciais” e “relevantes” à atividade econômica desenvolvida pelo contribuinte (COFIN e PIS), seriam, finalmente, superadas, a partir da vigência da nova emenda. O texto da PEC 45 excetua, exclusivamente, o direito de crédito em relação a operações consideradas “de uso ou consumo pessoal”, remetendo, porém, à lei complementar uma futura regulação. Não está claro qual o conceito de bens ou serviços de uso ou consumo pessoal será adotado, mas a expressão faz retomar o pitoresco exemplo da legislação neozelandesa, citado por André Mendes Moreira:[2] naquele país, em que a prostituição é legalizada e submetida à tributação sobre o consumo, as profissionais podem deduzir o imposto incidente na compra de lingeries rendadas e bordadas, pois se presume que sejam ligadas à atividade-fim, por elas exercida. Porém, peças íntimas da cor da pele, sem rendas nem outros adereços, não seriam consideradas insumos, e não dariam direito ao creditamento do imposto incidente na sua aquisição.
Além da não cumulatividade “ampla”, a PEC 45 também prevê o cálculo dos novos tributos sobre o consumo, o IBS e a CBS, sempre “por fora”, não integrando o preço dos bens ou serviços transacionados. O atual ICMS é, reconhecidamente, calculado “por dentro”: se uma mercadoria é comercializada com um preço de R$ 100,00 (cem reais), e a alíquota do ICMS é 17%, então R$ 17,00 (dezessete reais), do preço pago, correspondem ao imposto, de tal sorte que a alíquota real do imposto representa 20,48% (razão entre os R$ 17,00, do imposto, e o preço descontado do imposto, de R$ 83,00). Por anos litigaram os contribuintes com o fisco federal, para comprovar que a COFINS e o PIS deveriam incidir não sobre a base tributada com o ICMS (os R$ 100,00, do exemplo), mas sobre a receita real do contribuinte (R$ 83,00, no mesmo exemplo), até o ganho de causa obtido junto ao Supremo Tribunal Federal, na chamada “Tese do Século”, em 2017. Nos regimes de IBS e CBS, o preço real, de R$ 83,00 (oitenta e três reais), seria sempre a base de cálculo dos novos tributos, sem a incidência de um sobre o outro.
Ainda, toda a tributação deverá ocorrer no ente de destino da operação, de modo a superar as incontáveis discussões sobre a competência tributária de ICMS, em operações interestaduais, além dos constantes debates sobre o local da prestação dos serviços, no caso do ISSQN. Mas a definição do que deve ser compreendido por “ente de destino da operação” é remetida à lei complementar, trazendo a PEC não mais do que indicativos para o tema (“local da entrega”, “da disponibilização ou da localização do bem”, da prestação ou da disponibilização do serviço”, “do domicílio ou da localização do adquirente do bem ou serviço”), e ainda reconhecendo, expressamente, a possibilidade de diferenciações em razão das características da operação.
Ao longo da tramitação da PEC na Câmara dos Deputados, grande preocupação houve quanto à ideia de um regime uniforme, para todos os bens e serviços, submetido a uma alíquota também única e padronizada, fixada pelo Senado Federal. Dentro de uma perspectiva de uma alíquota conjugada de IBS e de CBS em torno de 24% (vinte e quatro por cento) ou 25% (vinte e cinco por cento), de forma a manter a atual carga tributária de ICMS, ISSQN, COFINS e PIS, a tributação de diversas atividades econômicas, especialmente no agronegócio e no setor de serviços, será, substancialmente, elevada. Regimes específicos de tributação, fora da regra geral de IBS e CBS, uniforme e com alíquota única, foram previstos para segmentos bastante díspares, como combustíveis e lubrificantes, instituições financeiras, operações com imóveis, planos de assistência à saúde e concursos de prognósticos, compras governamentais, cooperativas, serviços de hotelaria, parques de diversão e parques temáticos, restaurantes e aviação regional. Houve previsão, também, da redução para 60% (sessenta por cento) das alíquotas padrão de IBS e CBS, para bens e serviços específicos, e bastante singulares entre si, como serviços de educação, serviços de saúde, dispositivos médicos e de acessibilidade para pessoas com deficiência, medicamentos e produtos de cuidados básicos à saúde menstrual, serviços de transporte coletivo de passageiros, rodoviário, ferroviário e hidroviário, de caráter urbano, semiurbano, metropolitano, intermunicipal e interestadual, produtos agropecuários, aquícolas, pesqueiros, florestais e extrativistas vegetais in natura, insumos agropecuários e aquícolas, alimentos destinados ao consumo humano e produtos de higiene pessoal, produções artísticas, culturais, jornalísticas e audiovisuais nacionais e atividades desportivas, bens e serviços relacionados à segurança e soberania nacional, segurança da informação e segurança cibernética, tudo a ser definido em lei complementar. Também por lei complementar será definida as hipóteses de concessão de isenção, para transporte coletivo de passageiros, e a redução a zero das alíquotas de IBS e CBS, para dispositivos médicos e de acessibilidade para pessoas com deficiência, medicamentos e produtos de cuidados básicos à saúde menstrual, produtos hortícolas, frutas e ovos.
Para todos os que não se inserem nos regimes tributários específicos, nem foram beneficiados por alíquotas reduzidas, resta a expectativa da extensão da carga tributária a ser enfrentada naqueles segmentos que, atualmente, não se submetem à tributação massiva sobre o consumo do sistema tributário brasileiro. Aqui se encontra o agronegócio, em razão de regimes especiais de ICMS, COFINS e PIS. E também são aqui identificados os prestadores de serviços em geral, que não sofrem a incidência do ICMS e que não raro apuram o COFINS e o PIS no chamado regime cumulativo, com incidência de alíquotas mais reduzidas sobre a receita (3% e 0,65%, respectivamente), sem o aproveitamento de créditos fiscais. Para esses setores, a PEC 45 certamente traz grandes preocupações, pois anuncia um aumento de carga tributária em mais de 100% (cem por cento). Passarão eles a sofrer os efeitos perversos de uma tributação quase opressiva sobre o consumo, tão presente na indústria e no comércio no Brasil, sem sequer contarem com o alívio gerado pela ampliação dos créditos por insumos, diante das naturais limitações existentes tanto no agro, como nos serviços, em que o maior dispêndio ainda reside na própria mão de obra.
É de se esperar maior diálogo e discussões sobre a PEC 45, no âmbito do Senado Federal, para que a propalada “simplificação” do sistema tributário não seja a causa a um expressivo aumento de carga a setores ainda não atingidos de forma tão violenta pela expressiva tributação do consumo no Brasil. O caminho, acreditamos, deveria ser inverso: de redução da matriz tributária sobre o consumo, no país. Torcemos para que o projeto não seja a concretização da célebre frase de Lampedusa, “se queremos que tudo fique como está, é preciso que tudo mude”.
Edmundo Cavalcanti Eichenberg
[1] Disponível em https://www.oecd.org/tax/consumption-tax-trends-19990979.htm. Acesso em 26 jul 2023. [2] Moreira, André Mendes. A Não-Cumulatividade dos Tributos (p. 80). Edição do Kindle.