Neste mês de março de 2022, prosseguiu a tramitação, no Senado Federal, da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 110, de 2019, que dispõe sobre a reforma tributária. O relator, Senador Roberto Rocha (PSDB/BA), defendeu a aprovação, na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), do substitutivo apresentado em sua complementação de voto. A votação na CCJ, porém, foi adiada, a pedido de alguns senadores.
A PEC 110/2019, em linhas gerais, busca instituir um novo modelo de tributação do consumo, em substituição aos atuais tributos estaduais (Imposto sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação - ICMS), municipais (Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza - ISS) e federais (Imposto sobre Produtos Industrializados - IPI, Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social – COFINS e COFINS-Importação, Contribuição para o Programa de Integração Social e para o Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público – PIS/PASEP e Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico incidente sobre a importação e a comercialização de petróleo e seus derivados, gás natural e seus derivados, e álcool combustível – CIDE-Combustíveis). A proposta se baseia no denominado modelo dual do Imposto sobre Valor Adicionado (IVA), criando um IVA Federal (Contribuição sobre Bens e Serviços - CBS) e um IVA Subnacional (Imposto sobre Bens e Serviços - IBS). A proposta, com o substitutivo trazido pelo Senador Roberto Rocha, ainda trata sobre a fixação da base de cálculo do IPTU (Imposto sobre a Propriedade de Predial e Territorial Urbana), entre outras disposições.
Enquanto projeto de emenda à Constituição, o texto atua na delimitação das denominadas competências tributárias, poderes concedidos ao legislador de cada ente político (União Federal, Estados e Distrito Federal, e Municípios) para, por lei, instituir seus respectivos tributos. A PEC 110/2019, portanto, não traz a conformação final nem do IBS, de competência dos Estados e Municípios, nem da CBS, de competência da União Federal. Porém, o projeto institui regras gerais importantes, a serem observadas quanto da veiculação tanto do IBS, quanto da CBS.
Em relação à CBS, a PEC 110/2019 prevê a possibilidade de o legislador infraconstitucional instituir regimes diferenciados de tributação, em que a contribuição poderá incidir sobre a receita bruta auferida em determinado período de apuração. Também permite a instituição de regimes especiais e favorecidos de tributação, por meio de isenção ou adoção de alíquotas reduzidas e alteração nas regras de creditamento. Essas disposições do projeto permitem conciliar a instituição da CBS com os atuais regimes cumulativos de PIS e COFINS, em que a tributação é realizada exclusivamente sobre a receita bruta, desconsiderando-se os pagamentos realizados em operações anteriores, a exemplo do que ocorre, nos dias de hoje, com as empresas optantes do lucro presumido. Também autorizam a manutenção de regimes especiais como o próprio Regime Especial de Tributação de Incorporações Imobiliárias – RET. Efetivamente, o governo federal, ao apresentar o projeto destinado a instituir a CBS (Projeto de Lei 3.887/2020), manteve o RET, apenas elevando a carga tributária da CBS na composição do recolhimento unificado, resultando em uma alíquota final de 4,12% (quatro inteiros e doze por cento). Fora do RET, porém, a CBS incidiria em seu regime não cumulativo, com alíquota de 12% (doze por cento), nas demais operações imobiliárias. Está prevista apenas a isenção nas vendas de imóveis residenciais, novos ou usados, em favor de pessoas físicas. Como já tivemos oportunidade de comentar em outra oportunidade, o projeto da nova CBS é desolador e impraticável para as demais operações imobiliárias que não se submetam ao RET, nem constituam vendas de imóveis residenciais a pessoas físicas.
Quanto ao IBS, sequer há um cenário claro sobre como o segmento imobiliário será tratado, pelo legislador infraconstitucional. A PEC 110/2019 apenas prevê a possibilidade de a lei complementar nacional dispor sobre a instituição de regimes diferenciados de tributação para operações com bens imóveis, permitindo que o imposto incida uma única vez, sem a adoção do regime não cumulativo, de apuração de créditos e débitos. À evidência, abre-se espaço para uma nova imposição tributária ao setor, pois atualmente não incidem nem ICMS, nem ISS sobre a compra e venda ou a locação de bens imóveis. E o IBS, a ser instituído em substituição aos atuais impostos, aparentemente incluirá, em seu âmbito de incidência, ditas operações, ainda que submetidas a um regime especial de apuração.
Em todos os países do mundo que adotam o IVA, o mercado imobiliário sempre é tratado de forma diferenciada. Não há como se impor um regime não cumulativo, de créditos e débitos, com alíquotas expressivas, sem causar um profundo impacto nos preços praticados de vendas ou locações, ante o inevitável aumento de carga tributária. O tratamento necessariamente particular do segmento imobiliário foi expressamente reconhecido no próprio substitutivo do Senador Roberto Rocha. Porém, a solução adotada, de delegar ao legislador a escolha dos modelos a serem empregados para a tributação pelo IBS e pela CBS, não parece a melhor alternativa. Melhor via teria sido a aprovação da Emenda 66, de autoria do Senador Nelsinho Trad (PSD/MS), ou da Emenda 249, do Senador Luis Carlos Heinze (PP/RS), que expressamente preveem a não incidência do IBS sobre operações com bens imóveis. Como citado na justificativa apresentada pelo Senador Heinze, a própria União Europeia, base de referência mundial para o IVA, recomenda a isenção ampla para operações imobiliárias, seja de venda, seja de locação (Diretiva para o IVA1), medida adotada por Portugal. E a razão é evidente: a maior parte dos custos e despesas relacionados à atividade imobiliária não geram créditos, que possam ser compensados na apuração do imposto baseado no valor agregado.
Ambas as emendas, porém, foram rejeitadas na complementação do voto do Senador Relator. Espera-se que o entendimento seja revisto dentro do processo legislativo, pois nada justifica a autorização para uma nova imposição tributária no setor imobiliário, com o IBS.
Em paralelo, como já consignado, a PEC 110/2019 também altera as regras para a definição da base de cálculo do IPTU. Atualmente, a base de cálculo desse imposto demanda a aprovação da planta genérica de valores, por lei, votada e aprovada pela Câmara de Vereadores. Ao Poder Executivo é permitido apenas atualizar monetariamente a planta de referência, a cada ano, por decreto regulamentar. Mas qualquer modificação que não envolva a mera aplicação de índices de correção monetária pressupõe um novo processo legislativo, com a formação da maioria parlamentar natural ao regime democrático.
Segundo a PEC 110/2019, na redação do seu substitutivo, a base de cálculo do IPTU passará a ser atualizada ao menos uma vez a cada quatro anos, observados os critérios gerais estabelecimentos em lei municipal, cujo limite será o valor de mercado do imóvel. Ou seja, a nova redação proposta para a Constituição afasta a exigência de aprovação de nova lei, para a fixação da planta de valores: tudo correrá no âmbito do Poder Executivo, que apenas atenderá critérios legais gerais e estará limitado ao valor de mercado de cada imóvel. O texto do projeto é expresso ao consignar que não se aplicará, para a revisão da base de cálculo do IPTU, o chamado princípio da legalidade tributária, que exige lei para instituir ou aumentar tributos (art. 150, I, da Constituição).
Há um retrocesso legislativo nesse preceito do substitutivo. A legalidade tributária constitui uma das denominadas cláusulas pétreas da Constituição, por representar direitos e garantias individuais, não sujeitos a nenhuma proposta de emenda tendente a sua abolição (inciso IV do § 4º do art. 60 da Constituição de 1988). Reconhecida, há décadas, a sujeição da determinação da base de cálculo do IPTU à lei (súmula 160 do Superior Tribunal de Justiça, aprovada em 1996), não há sentido em atribuir ao Poder Executivo a prerrogativa de legislar sobre essa matéria.
Há, portanto, reflexos bastante preocupantes da PEC 110/2019 para o setor imobiliário, que recomendam a profunda mobilização do setor, antes que novas imposições ou regimes tributários mais gravosos sejam aprovados.
Edmundo Cavalcanti Eichenberg